Poderia estar tudo relacionado?


Já investigamos em posts anteriores algumas doenças que traçam caminhos comuns. Vimos que a mesma causa apresenta sintomas diferentes quando se manifestam diferentes pessoas e que isso tem a ver com comorbidades e heterogeneidade. Agora, cabe a nós investigar a possibilidade de que transtornos mentais também sejam capazes de percorrer caminhos comuns.

De início, vale lembrar que ainda existe em setores das ciências da saúde uma certa visão de que transtornos mentais são uma categoria absolutamente independente e separada de doenças médicas. Contudo, há inúmeras evidências que mostram que doenças médicas e transtornos mentais comumente ocorrem juntos. O que vemos na verdade é que transtornos mentais tem uma forte relação bidirecional com transtornos metabólicos e neurológicos. Assim, para explorar essas relações iremos abordar neste post três transtornos metabólicos (obesidade, diabete e doença cardiovascular) e dois transtornos neurológicos (Alzheimer e Epilepsia) em suas relações com transtornos mentais. Esses cinco transtornos médicos são fatores de risco para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, insônia e até mesmo psicoses. Para nossa surpresa, o inverso também é muito comum, pois pessoas com esses transtornos mentais apresentam a possibilidade de desenvolver doenças orgânicas.

Telomeros na parte final dos cromossomos

I. Transtornos Metabólicos

Os transtornos metabólicos são inúmeros e variados. Nós iremos focar naqueles que resultam em síndromes metabólicas, como é o caso de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares. Geralmente, síndromes metabólicas são caracterizadas por aumento da pressão sanguínea, aumento nos índices de açúcar no sangue, excesso de gordura na região abdominal, triglicerídeos altos e baixo HDL (colesterol bom). Pessoas com essas características tem risco de desenvolver diabetes tipo 2, ataques cardíacos e acidentes vasculares.

Diabetes

A conexão entre diabetes e transtornos mentais é conhecida por mais de um século. Em 1879, Sir Henry Maudsley escreveu que a diabetes é uma doença comum em famílias nas quais a "insanidade prevalece". Apesar do vocabulário antiquado para os dias atuais, já se observava um dado que seria confirmado nos dias atuais: 60% das pessoas com depressão estão propensas a desenvolver diabetes e pessoas com esquizofrenia são três vezes mais propensas a desenvolver diabetes.

E o que dizer do caminho contrário? Pessoas com diabetes são propensas a desenvolver transtornos mentais? Sim! Pessoas com diabetes estão duas ou três vezes mais propensas a desenvolver depressão. Além disso, a depressão dos diabéticos tende a ser mais longa. As estatísticas mostram que uma em quatro pessoas com diabetes tem uma depressão clinicamente significante. Ainda mais, a depressão parece afetar os níveis de glicose no sangue - pessoas com diabetes tendem a ter níveis maiores que não diabéticos. Por fim, não é somente depressão: um estudo com 1,3 milhões de adolescentes observou níveis de transtornos mentais por 10 anos. A conclusão foi que adolescentes com diabetes tem maior tendência a apresentar transtornos de humor, tentativas de suicídio, visitas ao psiquiatra e desenvolver qualquer transtorno psíquico.

Obesidade

A obesidade também é uma condição que acompanha transtornos mentais. Em um longo estudo conduzido por mais de 20 anos isso foi possível de ser observado. Inicialmente, a maioria das pessoas com esquizofrenia ou transtorno bipolar não era obesa. Após 20 anos, 62% das pessoas com esquizofrenia e 50% daquelas com transtorno bipolar estavam obesas em uma população que era na sua média adulta 27% obesa. Ou seja, a média entre esquizofrênicos e bipolares era maior que a média populacional. Crianças com autismo tem uma probabilidade de 40% de ser obesa. Além dessas dados, uma meta análise que reuniu 120 estudos mostrou que pessoas com transtornos mentais sérios tem 3x mais chance de desenvolver obesidade se comparado a pessoas sem transtornos graves.

É comum escutar de pacientes e médicos que os tratamentos estão causando obesidade e, de fato, há inúmeras medicações que estão associadas ao ganho de peso - em especial antidepressivos e antipsicóticos. Contudo, o tratamento exclusivamente não é a explicação completa. Um estudo apontou que pessoas com TDAH que fossem tratadas ou não desenvolviam forte tendência a obesidade. Isso chega a ser uma fato curioso, pois mesmo que o tratamento para TDAH sejam medicações estimulantes, que geralmente suprimem o apetite, pessoas com essa condição ainda tinham maior propensão ao desenvolvimento de obesidade que aquelas sem TDAH.

E se nos perguntássemos sobre pessoas que são somente obesas. Será que elas tem tendência a desenvolver transtornos mentais ? A resposta é "sim". Pessoas obesas tem um 25% maior de chances de desenvolver transtorno de ansiedade e 50% de chance de desenvolver transtorno bipolar. Nesse sentido, é importante cuidar com o debate acerca da obesidade, pois não se trata somente de uma diferença relativa a estética do corpo que está em questão, mas também de como o peso afeta conexões de regiões do cérebro como o hipotálamo.

Doenças Cardiovasculares

Por fim, falaremos de doenças cardiovasculares. Este que escreve teve um pai que foi ao longo de toda sua vida um homem depressivo e que infartou com 45 anos de idade. Esse é um fator de risco conhecido por minha família. 

doenças cardíacas


A depressão está presente em 20% de pessoas com ataques cardíacos, 33% em pessoas com falha cardíaca congestiva e 31% de pessoas com acidente vascular cerebral. Isso parece fácil de entender, pois naturalmente imaginamos que após um ataque cardíaco é natural que as preocupações e resíduos do trauma revelem uma depressão. No entanto, aqui trata-se mais uma vez de uma relação bidirecional na qual tanto um como o outro são capazes de se causar mutuamente. 

Sabemos que a depressão afeta o coração. Pessoas que nunca tiveram alterações cardíacas, mas que experimentam depressão, aumentam em 50% a 100% os riscos de ataque cardíaco futuro. Isso não pára na depressão. Pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e transtorno bipolar estão 53% mais propensas a desenvolver algum fator cardiovascular de risco. Um estudo conduzido ao longo de 13 anos em veteranos de guerra mostrou que o desenvolvimento de Transtorno pós-traumático aumentava a vulnerabilidade de esquemia cardíaca em duas vezes e que as chances de um AVC aumentavam em 62%.

Há mais dados que chocam nossa sensibilidade. É sabido há já algum tempo que pessoas com esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão crônica severa morre em uma idade mais jovem do que deveriam. Na média, essas pessoas perdem aproximadamente entre 13 e 30 anos de seu tempo de vida provável. Pode-se dizer que não são somente os transtornos graves, mas também os leves - ansiedade e TDAH - estão associados com diminuição do tempo de vida.

Sabemos que pessoas com transtornos mentais envelhecem prematuramente. Podemos ver por uma variedade de métricas que isso está acontecendo. Uma métrica é o cumprimento dos telêmetros no final dos cromossomos. Ele tendem a ficarem menores conforme envelhecemos. Telômeros pequenos são encontrados em doenças e transtornos relacionados a envelhecimento, tal como obesidade, câncer, doenças cardíacas e diabetes. Eles também foram encontrados em pessoas com depressão, transtorno bipolar, transtorno pós-traumático e abuso de substâncias.


II. Transtornos Neurológicos

Há quem diga que todo transtorno mental é um transtorno neurológico. Por mais que isso possa ser certo, não é certo dizer que o transtorno mental pode ser reduzido a problemas em neurônios. O que parece mais certo é que transtornos mentais tem causas e efeitos em tecidos nervosos. Transtornos neurológicos geralmente tem testes que permitem um diagnóstico preciso: anormalidades observáveis em tecidos cerebrais ou em fluídos no entorno do cérebro que podem ser visualizados em scanners cerebrais ou EEG.

Alzheimer

A doença de Alzheimer é uma das mais comuns formas de demência. Demências são transtornos neurológicos que prejudicam o funcionamento cerebral. Alguns sintomas comuns de todas as demências são a perda de memória, mudanças de personalidade, comprometimento da capacidade de julgar. Um dos achados clássicos no cérebro de pessoas com Alzheimer é a Proteína Tau que forma placas e massas no cérebro. Conforme as pessoas envelhecem, o risco de desenvolver Alzheimer cresce exponencialmente dobrando a cada cinco anos após os sessenta anos de idade. Aos oitenta e cinco anos, aproximadamente 33% de todas as pessoas desenvolvem Alzheimer. Há tipos de doença de Alzheimer que nascem de mutações genéticas e que se desenvolvem cedo, mas para a maioria das pessoas não se sabe exatamente suas causas. Além de histórico familiar, alguns dos fatores de risco para o desenvolvimento de doença de Alzheimer são traumas na cabeça e transtornos metabólicos.

Proteína Tau nos neurônios

Obesidade, diabetes e doenças cardíacas aumentam o risco de desenvolvimento de Alzheimer. O mesmo pode ser dito de hábitos como o cigarro e vida sedentária, pressão sanguínea alta e colesterol alto. Curiosamente, um dos fatores de risco é a presença de um gene chamado APOE4, que codifica enzimas relacionadas a produção de gordura e colesterol.

Os primeiros sinais de doença de Alzheimer são esquecimentos e sintomas mentais como depressão, confusão, ansiedade e mudança de personalidade. Conforme a doença avança cerca de 50% desenvolve alucinações e delírios. Basicamente, todos os sintomas psiquiátricos podem emergir da doença de Alzheimer. Se isso é o caso, o que estaria causando esses sintomas? É a mesma causa que está presente em pessoas que desenvolvem sintomas e transtornos mentais quando mais jovens? Uma coisa é certa: essa sobreposição de sintomas idênticos significa que não podemos de fato atacar a questão do que causa transtornos mentais sem olhar de perto para a doença de Alzheimer.

Epilepsia

Por fim, cabe aqui falar de epilepsia. Esse transtorno é relativamente raro, mas pode ter relações bidirecionais com outros transtornos. Ela pode começar em qualquer idade, mas na maioria dos casos começa na infância afetando uma a cada 150 crianças. Em alguns casos, ela é identificada por meio de anormalidades cerebrais, tais como AVC, lesão cerebral, tumor ou uma mutação genética rara. Para a maioria, contudo, a causa é desconhecida. 

Pessoas com epilepsia seguidamente tem sintomas psiquiátricos. É comum encontrar nessa população transtornos como TDAH e diagnóstico de autismo. Transtorno de ansiedade é comum em pessoas com epilepsia em proporções três a seis vezes maior que comparado com o restante da população. 55% sofre de depressão e um terço reporta tentativas de suicídio. Surpreendentemente, de modo geral as tentativas de suicídio ocorrem antes da primeira crise epiléptica. Outros estudos encontraram a probabilidade de bipolaridade aumentada em seis vezes mais nesse grupo e de nove vezes para a esquizofrenia.

Um sintoma comum da epilepsia são as tonturas. Sabemos que hipoglicemia pode causar tonturas. Esse sintoma é comum em diabetes do tipo 1 e 2. Contudo, o interessante nesse dado é que crianças com diabetes tipo 1 tem seis vezes mais de chance de desenvolver epilepsia se o diabetes se instaurar antes dos 6 anos. De modo semelhante, adultos com 65 anos ou mais que tenham diabetes tipo 2 tem 50% de chance de desenvolver epilepsia. E a obesidade? Será que ela não tem nada a ver com epilepsia? Um grande estudo mostra que pessoas acima do peso ou abaixo do peso desenvolvem um 60 a 70% de chance de desenvolver epilepsia em comparação com quem está no seu peso normal.

Escondendo de Vista

E então? Dá para ver a relação? Podemos dizer que há uma conexão entre doenças metabólicas e transtornos mentais?

Até aqui, quem nos guiou nas descobertas acerca do mundo dos transtornos mentais foi Chris Palmer, médico e professor de Harvard. Ele confronta-nos a observar o curioso fato de que transtornos mentais tem uma relação bidirecional não somente entre si, ou seja, ansiedade e depressão podem causar uma a outra mutuamente; mas tem uma relação bidirecional com enfermidades médicas. Ele pede que lembremos que relações bidirecionais são sinais de caminhos comuns, ou seja, algo comum está causando ou contribuindo para todas essas enfermidades. Será isso possível?

Quando conversamos com pessoas com depressão ou esquizofrenia e buscamos motivá-las a fazer exercícios, sair de frente da televisão e parar de comer comidas que não são boas para seu organismo, muitas vezes recebemos uma negativa. Essas pessoas geralmente não seguem as recomendações dadas. Algumas pessoas julga-nas dizem que falta a elas disciplina, vontade ou que sobra preguiça e autoindulgência. Contudo, se os transtornos mentais tem crescido tanto nos últimos anos, podemos dizer que estamos diante de uma epidemia de preguiça? Não parece fazer sentido afirmar isso.

A verdade é que essas pessoas estão apáticas, comem demasiadamente e sentem dificuldade em mover-se porque estão sofrendo metabolicamente. Seus corpos não produzem energia para fazer isso tudo. O metabolismo é a capacidade de produzir energia dentro das células e, como veremos, é lá que uma das mais importantes verdades sobre os transtornos mentais reside. 

Não se trata de problemas de motivação. É um problema metabólico.

Não percebemos o elefante na sala.










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